Irene Marques

O risco não é que a IA fracasse no aspecto técnico, mas sim no estratégico.

A maioria dos esforços atuais de Inteligência Artificial no México não são projetados para reinventar modelos de negócio, mas sim para fazer ajustes marginais no que já existe.

Escrito por
Irene Marques

Sócio da Olivia México. Especialista em facilitação e desenho de workshops de inovação, alinhamento, priorização, prototipagem e implementação estratégica como drivers de transformação.

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Neste verão, estive de férias e a trabalho na Espanha e um cabeçalho em um jornal basco chamou minha atenção: 'Três em cada 10 projetos de Inteligência Artificial em empresas espanholas foram cancelados porque acabam fracassando.' A principal razão: não saber como aplicá-la.

Aqui está a tradução completa para o português do Brasil:

Essa nota me fez pensar se existiria um dado equivalente no México. Não encontrei uma cifra oficial, mas, na minha experiência como consultora, suspeito que a porcentagem poderia ser ainda maior. Aqui, a narrativa dominante é que "estamos adotando a IA mais rápido do que nunca", mas poucas vezes se fala sobre quantos projetos realmente se consolidam e geram valor.

O crescimento do uso de IA no México é inegável. De acordo com o relatório “A era da IA no México, Panorama, Tendências e Dados 2024”, elaborado pelo Banco Santander e Endeavor, o número de empresas de IA no país aumentou 965% nos últimos 6 anos, chegando a 362 empresas ativas e mais de 11.000 empregos especializados. Esse boom atraiu mais de 500 milhões de dólares em investimento, posicionando o México como uma referência regional.

Mas quando falamos de impacto, as cifras mudam de tom. Segundo o estudo Unlocking AI’s Potential in Mexico da AWS:

  • 72% das empresas mexicanas que adotaram a IA se mantêm em um uso básico, focado em otimizar processos ou em tarefas rotineiras com chatbots públicos, sem chegar a inovar produtos ou serviços.

  • 16% avançaram para um nível intermediário, integrando a IA de forma mais transversal e melhorando a experiência do cliente.

  • Mas apenas 7% alcançaram a etapa mais transformadora, criando sistemas de IA sob medida para tarefas complexas que redefinem suas operações.

Em outras palavras: a maioria dos esforços atuais de IA no México não são desenhados para reinventar modelos de negócio, mas sim para fazer ajustes marginais no que já existe.

Como consultora em inovação, detectei três obstáculos recorrentes que impedem a IA de passar de uma promessa de mudança a um motor real de transformação:

1. Visão fragmentada

A IA costuma entrar como um projeto isolado, muitas vezes impulsionado por uma área de TI ou por um diretor que quer “inovar” sem uma estratégia transversal. O resultado: soluções desconectadas que não dialogam com outros processos-chave.

2. Déficit de talento e formação

A falta de especialistas é evidente, mas o problema mais profundo é a ausência de capacitação prática para as equipes que vão operar essas ferramentas. Assume-se que a tecnologia “fala por si só”, quando, na verdade, ela exige novos marcos de trabalho, métricas e habilidades.

3. Desconfiança nos dados

A IA é tão boa quanto a qualidade dos dados que a alimentam. Muitas empresas em nosso país ainda dependem de processos manuais ou sistemas fragmentados que geram informação incompleta ou pouco confiável. Isso provoca que os projetos sejam interrompidos ou que os resultados sejam questionados.

Nos últimos dois anos, vi empresas mexicanas investirem somas significativas em ferramentas de IA para atendimento ao cliente, apenas para abandoná-las meses depois porque os modelos não entendiam bem as solicitações ou porque a integração com seus sistemas internos nunca foi concluída.

Em outros casos, companhias do setor financeiro lançam projetos-piloto para análise preditiva de risco, mas os cancelam ao descobrirem que a base de dados histórica tem vazios demais para treinar um modelo confiável.

Esses fracassos nem sempre são divulgados, mas ocorrem com frequência e geram um efeito colateral: o ceticismo interno em relação à IA, o que faz com que futuros projetos enfrentem mais resistência para receber orçamento ou apoio.


Um desafio mais cultural do que técnico

É fácil pensar que o problema é apenas de orçamento ou falta de especialistas, mas a realidade é mais profunda: o verdadeiro desafio é cultural.

Em muitas organizações mexicanas, a IA continua sendo vista como um experimento ou uma “ferramenta que se deve ter” para não ficar para trás, em vez de uma mudança estrutural que exige redesenhar processos, papéis e formas de medir o sucesso.

Em termos de IA, fala-se de duas etapas: Deploy (implementar para produtividade) e Reshape (redesenhar o trabalho a partir da raiz). O México, na sua maioria, segue na primeira etapa, com exceções notáveis em setores como fintech, logística e manufatura avançada.

Se de fato queremos que o uso de IA no México passe de uma manchete otimista a um motor de competitividade, há passos urgentes: É indispensável formar em todos os níveis, não apenas líderes. A adoção será mais lenta se metade da organização não entender como usar a ferramenta ou a perceber como uma ameaça. Além disso, é preciso integrar a IA na estratégia central do negócio, e não como um projeto paralelo. Tudo isso sem esquecer de estabelecer métricas claras de impacto, para além de quantos usuários interagem com a ferramenta. E, finalmente, garantir a qualidade dos dados, investindo em limpeza, integração e governança.

A realidade é que ainda não podemos falar em maturidade da IA no México. Sim, o ecossistema cresce, as startups captam capital e os corporativos anunciam pilotos toda semana. Mas enquanto a maioria dos projetos seguir em modo experimental e não gerar mudanças estruturais no interior das empresas, a IA será mais um acessório do que um pilar de competitividade.

A experiência internacional —incluída a advertência que li na Espanha— nos diz que o verdadeiro risco não é que a IA fracasse tecnicamente, mas que fracasse estrategicamente: que seja implementada sem transformar, adotada sem integrar, e investida sem medir.

Esse é o ponto em que, se não formos críticos, o México poderia ficar preso: um país que ostenta sua adoção de IA, mas que não consegue convertê-la em vantagem real.

 


Por Irene Marqués, sócia da consultora Olivia.

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