A IA nos desafia em todas as áreas, mas em poucas delas tanto quanto no campo da liderança. A boa notícia é que já temos as ferramentas para enfrentar o desafio, e elas não têm nada a ver com código ou soluções tecnológicas.
Às vezes, um comentário que ouvimos se torna aquele “momento Eureka” que nos permite entender melhor nossa realidade e até mesmo projetar nosso futuro. As palavras de um executivo espanhol de telecomunicações foram esse momento para mim, quando, em um típico almoço executivo, ele disse: “A inteligência artificial (IA) exige que pensemos as organizações desde o início”. No caminho para casa, suas palavras voltaram à minha mente, sempre associadas a uma pergunta: Como podemos pensar em nossas empresas se nem sequer sabemos o impacto que a IA pode ter?
Hoje em dia, parece que só sabemos dimensionar seu impacto em termos negativos: os empregos que ela supostamente eliminará (mais de 85 milhões até 2025)1, os empregos que ela eliminará do mapa (mais de 40% até 2050)2 ou os setores que ela colocará fora do mercado (pelo menos cinco)3. No entanto, não somos capazes de projetar com a mesma precisão como aproveitar essa nova tecnologia. Não temos dados, não temos experiência.
Muito menos sabemos como liderar as organizações e as pessoas que fazem parte delas nessa jornada rumo ao desconhecido. Não há dúvida de que precisaremos aplicar uma nova maneira de liderar que deixe para trás a segurança de planos estratégicos de três anos, projeções de vendas anuais ou até mesmo políticas de reconhecimento baseadas na experiência. Mas teremos que começar a fazer isso sem referências.
Sócrates, com sua frase “Só sei que nada sei”, já estava, sem saber, preparando nossos ancestrais para o início da cultura ocidental moderna. Agora, a IA está nos desafiando da mesma forma: ela não nos permite abordá-la com os conceitos e as ferramentas que temos, mas exige uma nova maneira de pensar nela e com ela. O grande filósofo nos ensinou que o reconhecimento da ignorância é o ponto de partida para a busca do verdadeiro conhecimento, além dos fatores condicionantes impostos a nós pela incerteza e pelo medo do desconhecido. Mas, diferentemente daqueles que se reuniram para debater na ágora de Atenas em 400 a.C., no futuro seremos forçados a interagir com uma inteligência que parece humana, mas não é. Por isso, nossa liderança terá de ser a mais forte possível.
Portanto, nossa liderança terá de ser capaz de conectar o humano com essa inteligência artificial, dando origem ao que poderíamos chamar de “LIAdderarquia”, que terá de ser caracterizada pela busca contínua de conhecimento. Conhecimento que é gerado na estrutura de um processo colaborativo no qual convergem fatos (dados de IA) e visões (experiência humana). O líder deve fornecer o terreno fértil para que essa sinergia ocorra. A principal função do líder será impulsionar o viés de aprendizado dos humanos, e a IA ajudará com dados para neutralizar seus vieses.
Em outras palavras: o novo “LIAder” não dita, ele pede. Sua principal tarefa, como no método socrático de maiêutica, será incentivar suas equipes a questionar e refletir. Essa dinâmica de questionamento e diálogo representa um caminho para um futuro colaborativo, inclusivo e participativo. É um caminho que leva a uma era em que a liderança é exercida com uma capacidade reflexiva, que valoriza a adaptabilidade constante em detrimento da experiência isolada, seguindo os ensinamentos socráticos baseados em dois pilares: ética e humanismo.
“Você não pode viver uma vida boa sem ser uma boa pessoa”, disse Sócrates. Portanto, o novo líder deve garantir que a IA e suas tecnologias sejam usadas de forma ética e que promovam valores humanísticos dentro da organização. Caso contrário, corremos o risco de a máquina assumir o controle. Não porque ela seja mais inteligente que os humanos, mas porque é mais eficiente e porque não sabe distinguir entre o que é moralmente correto e o que não é, o que é benéfico para os humanos e o que não é.
Em nossa sociedade atual, tendemos a distinguir entre pelo menos quatro modelos de liderança: autocrático, transformacional, transacional e participativo. A IA, sem dúvida, afetará cada um deles e exigirá adaptação:
Liderança autocrática: parte do poder decisivo é investido no líder. Em face da IA, ele tem tudo a perder. Ela tem sido eficiente em ambientes em que decisões rápidas são cruciais, mas, diante do poder da IA de analisar as informações disponíveis com mais rapidez e precisão do que qualquer ser humano, o líder autocrático só pode mudar de ares. “O conhecimento começa na admiração”, disse Sócrates. Na era da IA, o papel do líder autocrático passa a ser o de promover essa admiração por meio de sua capacidade de fazer perguntas à IA. Só então ele terá as rédeas da decisão final, com base na ética e no humanismo.
Liderança transformacional: esse líder se concentra em inspirar e motivar os seguidores a mudar suas expectativas, percepções e motivações. A inteligência artificial permitirá que isso seja feito de forma mais assertiva e precisa. Por meio da IA, o líder transformacional poderá entender melhor as necessidades e as capacidades de suas equipes e, assim, personalizar a abordagem da mudança com base em um entendimento mais profundo e analítico, seguindo a abordagem socrática clássica do “conhece-te a ti mesmo”.
Liderança transacional: esse é um líder que opera de acordo com um sistema de recompensas e punições. A IA permitirá que você ajuste ambos dinamicamente em tempo real, com base na análise preditiva e no comportamento histórico. No entanto, ela também correria o risco de violar a ética que exige que não manipulemos as pessoas, mas que as orientemos.
Liderança participativa: nesse caso, o líder inclui os membros da equipe na tomada de decisões. Embora ele ou ela ouça opiniões diferentes e convide pontos de vista diferentes, a decisão final cabe a ele ou ela. É esse modelo que tem tudo a ganhar na era compartilhada homem-máquina. Com assistentes de IA e ferramentas colaborativas à sua disposição, o líder participativo poderá facilitar uma troca de ideias mais rica, com base em dados e análises sofisticados, dando a cada participante o panorama completo para fazer uma contribuição significativa.
Seja qual for o estilo que queiramos imaginar para nossas organizações, o ponto em comum será que o líder do futuro precisará saber como navegar no presente com um olho na estratégia de longo prazo e outro nas oportunidades reais que os dados confirmam no curto prazo, mesclando a sabedoria do ser humano com a precisão da máquina. Sempre mantendo a ética e o bem-estar humano no centro de tudo o que faz.
No entanto, para que esse “LIAderazgo” crie raízes nas organizações, elas também precisam repensar sua dinâmica e sua cultura, que é o conjunto de acordos, costumes e normas explícitos e implícitos que regem a maneira como uma empresa opera. A experiência dos últimos anos nos ensina que os ambientes de trabalho do futuro exigem uma cultura baseada na transparência e na colaboração.
Em um ambiente profissional cada vez mais global, em organizações que trabalham em diferentes fusos horários e regiões geográficas, o controle à moda antiga não funciona mais. Agora não é o tempo trabalhado que é monitorado, mas a realização de objetivos definidos com base na confiança. Nesse ambiente, a IA atuará como um espelho e uma lente, permitindo que as crenças e os valores da organização sejam contrastados com seus objetivos.
As hierarquias e as noções de sucesso e fracasso perderão peso para a abordagem centrada na equipe. O resultado será uma cultura na qual a produtividade não é buscada às custas do bem-estar dos funcionários, mas sim o bem-estar dos funcionários é buscado para que eles possam ter o melhor desempenho possível, garantindo uma organização saudável que consegue se reinventar de acordo com as necessidades do mercado.
No futuro, o ser humano continuará a ser o protagonista das organizações, mas ao lado da IA. E contaremos com o “LIAdrepreneurship” para encontrar o equilíbrio entre humanidade e tecnologia, entre sabedoria e experiência, entre ética e eficiência.
A “LIAdderarquia” socrática é um chamado para liderar não a partir do pináculo piramidal do poder, mas do centro de um círculo de conhecimento e ética compartilhados. É o reconhecimento de uma odisseia rumo a uma cultura de trabalho que visa ampliar o melhor dos seres humanos em conjunto com a inteligência artificial. Nesse futuro, o papel do líder é vital, como facilitador e guia, com a capacidade de mobilizar equipes híbridas e cultivar um ambiente em que todas as decisões sejam baseadas na capacidade técnica, mas que, ao mesmo tempo, priorize o bem comum, como antecipou Sócrates.
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Por Óscar Velasco, sócio da Olivia España.