A trajetória das grandes bandas de Rock nos deixa experiências que podemos aproveitar nas nossas organizações. A liderança colegiada é talvez a mais valiosa – além de sua música, claro. Há uns dias, se soube que os Rolling Stones voltam -pela enésima vez- aos estúdios. Lá, contarão com a participação de Paul McCartney e Ringo Starr, nada menos. Além da curiosidade de voltar a ver Beatles e Stones juntos em um estúdio -se sabe que em mais de uma ocasião compartilharam as instalações de gravação- a notícia me lembrou que liderança nunca é uma atividade que se faz em solitário. Para ser sustentável no tempo e permitir que uma equipe continue evoluindo, requer algo tão simples e ao mesmo tempo tão delicado de conseguir como uma liderança colegiada.
É que a liderança não é um lugar para Prima Donas nem super-heróis. Liderança requer da vocação de servir para que a organização possa evoluir. Esta vocação pode ser exercida de forma individual ou coletiva. E comprovam muito bem justamente as bandas de rock com mais longevidade em um âmbito tão instável como é o negócio da música.
Lembremos: os Beatles se separaram em 1970. Mais de 50 anos mais tarde, os Stones continuam cantando, atuando e gravando como grupo, como organização. Enquanto alguns dos seus integrantes beiram a marca dos 80 anos de idade conseguiram evoluir e não perder sua vigência, como comprovam os shows que até hoje costumam estar esgotados. Nesse caminho, sobreviveram a escândalos, divórcios, e até mortes -o baixista Brian Jones (1969) e o baterista Charlie Watts (2022). É que desde o seu início, ao contrário dos quatro de Liverpool, os garotos maus de Londres souberam avançar no coletivo, com base na clara ideia de que eram melhores como grupo, como organização, do que como indivíduos (se não que perguntem a Keith Richards). Seu caminho, evidentemente, nunca esteve livre de etapas em solitário de um ou outro. No entanto, o grupo soube gerar uma dinâmica de trabalho baseada na regra básica de cuidar do “modelo de negócio” que funcionava aos quatro - e evoluir a partir dali.
O princípio da boa liderança é e será sempre o sistema
Esta característica dos meus queridos Stones -e de outras tantas bandas místicas do Rock- exemplificam a partir de um lugar diferente que qualquer grupo humano -seja uma banda de rock, um time de futebol ou uma organização empresarial- é um sistema que funciona com base em ritos, costumes, a “ritmos”, que devem funcionar a uníssono. Este conjunto de costumes, tanto explícitas quanto tácitas, confirmam a cultura. Este sistema não evoluirá pela visão iluminada de uma pessoa. Evolui com base em uma liderança que impulsiona a necessidade da mudança justamente a partir dos eixos que confirmam a cultura e, consequentemente, o sistema. Não é uma liderança que ordena o que é que é preciso fazer ou como é preciso fazer.
Dito de outro modo, uma companhia não pode mudar de forma abrupta para se tornar uma companhia diferente, contratando um Steve Jobs ou um Jack Welch. Muda se consegue gerar múltiplos Jobs ou Welchs que queiram impulsionar a organização em seu conjunto.
Para conseguir isso, como líderes devemos entender, primeiro, como funciona o sistema da nossa organização. Com esse conhecimento poderemos, depois, trabalhar e, no caso de que seja necessário, modificar as regras do sistema para instalar em nossa cultura a visão da mudança, da inovação. É sobre estas bases que se gera uma visão de mudança que será colegiada e baseada no DNA da nossa organização. Só assim conseguirá navegar em tempos como os atuais, marcados por terremotos financeiros, crises energéticas e guerras, pela instabilidade 360º que vivemos.
Sem lugar para as estrelas
Há múltiplos exemplos que comprovam isso ao longo dos anos. Um dos que mais me inspiram nesse sentido é o de Hubert Joly, ex-CEO da BestBuy. Após a explosão do e-commerce no começo do século, as vendas desta rede de lojas de eletrodomésticos e tecnologia despencaram. Amazon, JD.com ou E-Bay estavam literalmente esvaziando o modelo de negócios da BestBuy. Mais rápido, mais barato, mais diretos, os disruptores derretiam a razão de ser da “loja de proximidade” que era BestBuy. Tudo indicava que o final estava perto. Em um último reflexo, os donos contrataram Hubert Joly.
Proveniente da Carlson Companies, uma corporação especializada em Hotelaria, Joly se encarregou da BestBuy em 2012. A companhia tinha fechado o ano anterior com prejuízos de US$ 1,2 bilhão. Joly não era o líder do estilo de um Jack Welch ou Lee Iacocca, os místicos CEOs da GE e da Ford ou Chrysler. Joly não buscava impor uma visão em particular, mas desenvolvê-la com base na cultura inerente que refletia as fortalezas da companhia que estava em seu comando. Assim que chegou à BestBuy começou a visitar e caminhar por todas as lojas da Best Buy que tinha a seu alcance. Anônimo às vezes; outras usando uma camiseta que dizia: “CEO in Training”. A partir dessa experiência de terreno, Joly soube colocar em valor o principal traço que caracterizava a BestBuy: a expertise tecnológica de seus vendedores. Joly criou um sistema de consultorias de eletrodomésticos a domicílio. A iniciativa se transformou em um veículo de proximidade com seus clientes que antes não existia e que contrastava com o modelo do e-commerce. Como essas, Joly criou um conjunto de novas práticas, todas destinadas a celebrar o vínculo entre um cliente e um vendedor. Os clientes agradeceram. Em 2019, no final do mandato de Hubert Joly, A BestBuy contava com 125.000 funcionários e uma cotação que tinha aumentado 300%. Joly, não encontrou o caminho com base no brilhantismo, iluminação, fortaleza ou sorte. Soube gerar com sua equipe uma proposta de valor diferenciada, ancorada no principal ativo que a BestBuy tinha desenvolvido ao longo da sua história – e levá-la ao futuro.
O Século XXI nos ensina hoje e a cada dia que nossas organizações só serão sustentáveis e valiosas com vistas ao futuro se conseguirem evoluir e se adaptar a uma velocidade maior do que no passado. Esse horizonte requer uma liderança baseada em pessoas que entendam a nossa empresa, como o sistema que é e com o propósito que tem para aproveitar. É uma visão de liderança que opera então a partir desse propósito, entendendo e impulsionando a mudança a partir do DNA que fazem a nossa organização em seu conjunto. Na nossa próxima nota falaremos justamente de como devemos intervir no sistema para aproveitá-lo.
O investigador Rakesh Kurana já antecipava em 2002 no artigo que publicou na Harvard Business Review sob o título: “The Curse of the Superstar CEO”. Quando o líder se sente mais importante do que o sistema que representa, o sistema implode. Vimos isso na Apple, com o primeiro Steve Jobs. Vimos na Lehman Brothers, com Richard Fuld. Vemos hoje e em tempo real com Elon Musk, no Twitter. Por isso, deixemos os “salvadores” e “iluminados” líderes no passado e tenhamos coragem de nos colocarmos como líderes à serviço das nossas organizações. Ou seja, desfrutemos dos Stones e aprendamos com os Beatles. O futuro vai nos reconhecer por isso.
Por Alberto Bethke, CEO e sócio fundador da OLIVIA