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A liderança precisa de pessoas que saibam intervir no sistema, comprometendo-o a uma visão de reinvenção constante. Algumas ideias para saber como fazer isso e exemplos para acreditar.

Falamos na minha última coluna da importância de entender que a era da liderança messiânica no estilo de uma Jack Welch of Lee Iacocca terminou (se é que alguma vez existiu). Para entender isso de outro lugar, fazíamos referência ao destino que tiveram Os Beatles em comparação com o presente contínuo que conseguiram os Rolling Stones até o dia de hoje. Seu diferencial não foi a qualidade de sua música, que é indiscutida em ambos os casos. Seu diferencial terminou sendo o tipo de liderança. Ao contrário dos quatro de Liverpool, os Stones se caracterizam até o dia de hoje por uma liderança que, a partir da visão individual, opera e privilegia a evolução do sistema sobre os ganhos individuais. Quer dizer, uma liderança que privilegia o todo e o com todos, em vez do super-herói solitário.

É que, para sobreviver e perdurar, todo sistema está obrigado a crescer, a evoluir em valor. A Lei de Rendimento Marginal Decrescente nos ensina que esse crescimento não passa necessariamente pelo tamanho da nossa organização, mas muito mais pela validade da sua proposta de valor; por sua melhoria; por sua sofisticação. Em uma palavra: por nos reinventarmos como sistema. No momento em que deixamos de aspirar a isso começamos a ficar no tempo; começamos a ser vítimas da obsolescência e, em última instância, a desaparecer. Para conseguir trabalhar no e com o sistema, as nossas organizações necessitam da liderança, acionada a partir da cultura organizacional, que forma as bases do nosso agir como grupo para uma visão de futuro compartilhada.

O caminho da evolução

Um dos melhores exemplos de uma empresa que conseguiu essa difícil arte é Johnny Walker. Sua primeira reinvenção foi desenvolver o conceito do “Blended Whisky”. Com sua fórmula, a empresa conseguiu a primeira massificação da bebida. Mais tarde, a empresa entendeu que sua oportunidade passava por se transformar em um negócio global. Para isso, em tempos nos quais, a Internet não era nem uma utopia, desenvolveu a icônica garrafa quadrada. Sua funcionalidade para sua visão global? A garrafa ocupa o espaço de uma embalagem sem deixar espaço para atritos, nem rupturas. Além disso, inovou com uma etiqueta na diagonal. Sua funcionalidade para a visão global? Permitia-lhe aproveitar o mesmo formato de garrafa para diferentes produtos e com o benefício de utilizar letras maiores do que os seus competidores. No entanto, a maior conquista chegou com o claim do “Keep Walking; Johnny Walker”. Poucas mensagens conseguiram se adaptar a uma realidade em transformação de forma tão sutil quanto o “Keep Walking”, transformando Johnny Walker em um sinônimo de perpetuidade. Confirma, então, seja pelo produto, pela embalagem ou pelo mantra, uma empresa precisa se reinventar de forma constante para se tornar indispensável no tempo.

Agora, os tempos que correm –chamem de crise bancária; crise energética; crise geopolítica; ou crise democrática- nos lembram a cada dia que essa evolução nos exige nos reinventarmos em uma frequência cada vez mais curta. A pergunta que devemos nos fazer então é como conseguimos sustentar esse ciclo de reinvenção através da nossa liderança e em um prazo que diminui diariamente? Como intervimos na nossa organização para gerar uma cultura de mudança e transformação contínua?

A intervenção: uma sequência de passos a diferentes velocidades

O primeiro passo é o de sempre articular uma visão de futuro que seja adotada por toda a empresa. A liderança que prioriza a evolução do sistema se centraliza em ajudar a organização a definir o objetivo a alcançar. No entanto, o ou os líderes não intervêm no como ou no que é preciso fazer para atingir esse objetivo. Em vez disso, priorizam buscar o consenso e a adesão da companhia sobre essa visão de futuro. Em um segundo passo, a liderança facilitará que a própria organização encontre o melhor caminho para fazer isso. Novamente, este tipo de liderança intervém priorizando sustentar a mudança sobre a base de uma cultura que aceita e se compromete com a mudança.

Mencionávamos na minha nota anterior o caso concreto de Hubert Joly, da BestBuy. Outro, talvez mais recente seja o de Herbert Diess, que até 2022 era CEO da Volkswagen e que impulsionou a transformação do maior grupo automotor do mundo a mudar do modelo de negócio para o veículo elétrico. Seu exemplo em comparação com o de Joly, da BestBuy, nos serve também para entender a importância de que a liderança saiba interpretar e agir corretamente sobre a cultura da organização. Enquanto Joly soube iniciar, sustentar e alcançar o objetivo da transformação durante o tempo, Diess conseguiu que o grupo automobilístico se alinhe atrás da visão da mudança para o veículo elétrico, mas sem poder absorver a velocidade da mudança que ele propunha. Em julho de 2022, dois anos depois de iniciar o processo de mudança, a companhia desvinculou o executivo em julho. Não por marcar uma visão muito ambiciosa (entre outros, até 2035 VW já não venderá carros com motores à combustão na Europa), mas pela resistência interna que gerou ao grupo que hoje emprega mais de 660.000 pessoas no mundo.

Os exemplos nos lembram que uma visão de futuro sempre contém um elemento de utopia. Essa utopia não pode ser um objetivo em si mesmo, mas é um desejo que vai modificando as condutas do sistema nessa direção. Em outras palavras, o líder deve se permitir sonhar com algo que não existe no presente, mas está obrigado a saber articular de tal forma que a companhia -o sistema- seja capaz de incorporá-lo a seu DNA.

A ferramenta: uma sequência de silêncios e encontros

Intervir no sistema requer do líder ter as capacidades conversacionais para conseguir a adesão nessa direção. Para isso deve saber articulá-las. Isto vai requerer, saber gerar o espaço para debatê-las, também poder ensiná-las e, mais do que nada, ajudar para que as pessoas possam imaginar o futuro. Para conseguir tudo isso, a liderança deve ter principalmente a capacidade de escuta que lhe permita interagir com as engrenagens do sistema, conhecendo e respeitando as realidades que o sistema vive.

Só assim poderá começar a influenciar para que as engrenagens do sistema -os ritos e rituais que formam a cultura da companhia – gerem as modificações que a visão de futuro proposta exige. Dito de outra forma, o líder que trabalha para a evolução do sistema -a organização- não desconhece ou desatende os problemas do presente, mas constrói a partir dali o futuro sonhado; a visão de futuro acordada entre todos. Hubert Joly soube fazer isso na BestBuy, Herbert Diess, não.

Então, o pilar sobre o qual constrói esta liderança é um só “as pessoas”; não as margens, nem as taxas de crescimento. O líder que busca a evolução constante se foca e centraliza sua ação nas pessoas que compõem a sua organização. Trabalha sobre o vínculo que os unem no objetivo comum que é manter vigente o modelo de negócios para que seja valioso também a futuro para seu ecossistema e, assim a sociedade toda. Em comparação com os líderes do tipo superestrela, esta liderança não é feita com uma equipe de seguidores, mas com uma equipe de especialistas que, cada um sabe mais que o líder.

Cercar-se dos melhores

Para exemplificar, vamos conferir o exemplo de Klaus Ploenzke . Este alemão de 87 anos hoje é fundador do que depois seria a Ploenzke AG, uma das tecnológicas mais sofisticadas que nasceram nos anos 90 na Alemanha. Em uma conversa que mantivemos no ano 2000, eu lhe perguntei qual tinha sido o segredo para poder transformar uma pequena empresa informática fundada em 1969, na pequena cidade de Wiesbaden, em uma corporação com impacto global no renomado setor europeu. Sua reposta foi tão simples quanto clara: “Sempre procurei me cercar dos melhores e me assegurei de que soubessem mais do que eu. Entendi a minha função em conseguir que funcionem como uma equipe e que, a partir dali, trabalhássemos sempre a partir da confiança e do entusiasmo que geram os objetivos comuns”. Ploenzke também me ensinou a importância que a humildade tem para este tipo de liderança. Porque não é a humildade, mas a vulnerabilidade, que gera a empatia para que nossos colaboradores queiram trabalhar juntos nos bons e nos maus momentos, para se esforçar além do conveniente e para não receber um “não sei” como uma fraqueza para aproveitar, mas como um convite para solucionar.

Resumindo, a liderança que trabalha a partir do sistema, para que esse sistema tenha um futuro, intervém conhecendo a fundo as “engrenagens” da companhia que quer levar ao futuro; os respeita, mas não deixa de questioná-los e trabalhar para redefiní-los de acordo com a visão de futuro, colocando as pessoas sempre no centro. A partir dessa visão, me surpreende que haja quem identifique Vladimir Putin e quem segue seu exemplo, como um líder que pode levar a sua organização – a Rússia – a evoluir e perdurar. Talvez ele também faria bem em ouvir mais os Rolling Stones. Afinal, o grupo conquistou sua marca na história geopolítica. Em 25 de março de 2016, os quatro britânicos tocaram em Havana, Cuba, em um show gratuito que reuniu mais de 500.000 pessoas e animou várias gerações de cubanos a pensar de forma diferente e a contemplar um futuro diferente do de seus pais.

Por Alberto Bethke, CEO e sócio fundador da OLIVIA

 

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